Nossa produtora editorial, Bianca Gulim, alerta sobre as escolhas em prol do escritor, e não da obra
Nada melhor do que se sentir confortável, não é? Mas nem sempre o conforto é algo bom.
Escritor, confie no meu conselho: é essencial que você tome as decisões em relação à sua publicação pensando no que é melhor para o livro, e consequentemente para o leitor, e não no que é melhor para você; se conseguir conciliar os dois, ótimo, mas, senão, priorize o leitor, e não você.
O leitor — e o editor — percebe quando as decisões tomadas durante a produção do livro foram convenientes para o escritor, e isso o faz parecer um profissional amador, assim como sua obra.
Vou dar um exemplo muito comum para elucidar: livros narrados em primeira pessoa por dez personagens diferentes. Está errado? Não, mas o que motivou o escritor a fazer isso? Em 90% dos casos a resposta é que o escritor gosta de escrever em primeira pessoa, mas muitas cenas importantes não contam com a participação do protagonista, então ele decidiu narrar aquela cena do ponto de vista de um dos personagens presentes.
A chance de isso não dar certo é muito grande; até porque construir um narrador já é bem difícil, imagine dez. Afinal, se são dez personagens diferentes, serão dez narrações diferentes no que se refere à linguagem, estilo, fluxo de consciência, descrição, e assim por diante.
Mas vamos analisar o problema do escritor desse exemplo. Ele começou a escrever o livro em primeira pessoa porque é sua preferência, é como ele se sente confortável, mas aí, depois de 60 páginas, bum! O leitor precisa receber determinada informação, mas o protagonista não pode saber disso. E 40 páginas depois, de novo. E outra vez após mais 60. Escolher aleatoriamente outro personagem para narrar as cenas é a melhor decisão para o livro? Provavelmente não.
O que fazer nessa situação? A primeira coisa que eu faria seria repensar se a primeira pessoa é a melhor decisão para esse livro.
Ah, Bianca, mas pra mim escrever em terceira pessoa é muito difícil.
Ninguém falou que seria fácil, amigo. Encare esse desafio e cresça com ele. Mas supondo que você bata o pé e queira narrar em primeira pessoa, será que não há saídas mais interessantes para a obra?
Você pode elencar as informações que precisam ser passadas ao leitor sem o conhecimento do narrador e estruturar o livro de forma estratégica. Por exemplo, dividir o livro em partes, e no início de cada parte você traz um trecho do diário de algum outro personagem, no qual você insere a informação; ou uma matéria de jornal. Ou, até, que tal criar um narrador terceiro cheio de personalidade, intrometido, que a cada determinada média de número de páginas vai aparecer e fazer uma contribuição divertida, ou sombria?
O escritor é livre para fazer o que quiser, para fugir do convencional, fazer algo nunca ou pouco feito antes. O importante é que isso seja feito de maneira estratégica, pensada, e que todo o livro seja produzido levando em consideração essa estratégia. Porque assim, mesmo que seja uma estratégia audaciosa, e mesmo que o leitor não goste, pelo menos funcionará, ficará claro o objetivo do escritor. Não dá pra encontrar soluções rápidas, convenientes para o autor, para resolver problemas complexos.
Poxa, Bianca, mas assim vai dar muito trabalho, né? Vou levar muito tempo pra escrever um livro se eu tiver que refletir sobre cada detalhe dele.
Escrever um livro dá trabalho mesmo. Se escrever um original foi algo que você fez com muita facilidade, rapidinho, de duas uma: ou você é um gênio da literatura ou não fez um bom trabalho. Sinto ser a portadora da má notícia, mas a segunda opção é mais provável que a primeira.
Então, se você quer ser um escritor, prepare-se para ter muito trabalho no planejamento da obra, mais trabalho na escrita do rascunho, mais trabalho nas suas edições, mais trabalho no acompanhamento da produção editorial. E isso é só o começo, porque depois vem a divulgação, a distribuição, as vendas… Mas isso é assunto para outros artigos. O recado aqui é: faça uma escolha confortável apenas se ela realmente for a melhor decisão para o seu livro; se a melhor decisão para o seu livro for desconfortável para você, encare o desafio.
E você, anda tomando muitas decisões confortáveis?
Até a próxima!